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  • Photo du rédacteurCretté Alexandra

Très velas negras, texto de Alexandra Cretté, traduçao de Samuel Tracol

Dernière mise à jour : 24 sept. 2020


Todo rasto é assinado ao cair da noite, quando a lua cheia se rende aos limites. Sejam quais forem os seus confins. Nesses confins de floresta íngreme onde o rasto do homem desaparece mais rapidamente do que o esterco de mosca, a escrita - como o trilho de uma formiga - existe.


Como a última gota cinzenta de chuva. Tal como o fumo a sair do solo húmido - a escrita existe e depois já não existe, incandescente e efémera, longe da primeira obra de escrita. Os homens dispersam-se ao longo de estradas incertas e complexas. A floresta oceânica, ao redor, num murmúrio ensurdecedor, desaparece. Escrevemos no meio dum início de ruínas. Ao pulsar de um cataclismo fantasioso, como na ponta de nos mesmos e às testemunhas de todos os rastos que poderemos semear.


Escrevemos mil dessas mil histórias de almas que não dirão que têm razão, ou poder ou escolha. Num mundo que, mais uma vez, está em colapso, escrevemos os mil rios de trilhos humanos que jorram, num efeito de luta com o mundo. Pois de paz com o mundo, depois de cavar o leito.  


O que restará quando os nossos estertores estiverem mortos connosco?  


Queimámos três velas negras contra inimigos invisíveis. Contra os nossos medos interiores. Depois começámos a escrever.  


Quando escrevemos, afastamo-nos para fazer existir, nas nossas línguas, uma melodia que possa ser ouvida. Atravessando milhares de miles, dum oceano a um outro.


Escrevemos os mil rios que correm pelo espaço de todos os lados - barriga aberta, desdobrada, feminina - obscena - alegremente voluptuosa, obscena e fecundo em face da vontade de destruir.


Pois tudo está ainda por fazer.


Tudo esta ainda por fazer no sentido. Este imbróglio de hesitações e mal-entendidos mútuos. Não temos nada para suavizar. Nada para tornar homogéneo. Pelo contrário. Temos de preservar o emaranhado do que nos escapa.


Não para ser hermético, mas para preservar o que ainda é significativo. O que nos resta para nos compreendermos uns aos outros. Para preservar a fluidez do viver, a procura de uma profundidade ou de uma surfacialidade do sentido. Para além daquilo apenas se mostra.


A língua é a nossa casa aberta a todos.


Três velas negras contra a morte - para além da massa da noite cadente. Para além a vida faz o seu ruído que nos ensina a música e a dança, a linguagem do mundo.


Temos línguas fumígenas, outras que se impõem aos outros, que encerram ou se unem e temos de escolher. Mas as nossas línguas falam contra nós próprios, e o tempo para um poema, uma pequena história, faz-nos abundar na superação de todo sentido próprio : aí onde devemos ir. Aí onde o nosso trilho perdura.


Três velas negras protegem-me, no meio dos cruzamentos, quando o homem é o maior predador possível.


Três velas negras contra o desastre do mundo, colocadas por sorte no caminho da escrita.


Texto escrito em 3 de Junho de 2020, aldeia indígena de Kuwano.


Alexandra Cretté, traduçao de Samuel Tracol.







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